A FORÇA DAS PALAVRAS

No último dia 27 de fevereiro, segunda-feira, alguns sites de notícias brasileiros publicaram uma matéria que nos chamou a atenção. A notícia faz referência a uma iniciativa do Ministério Público Federal (MPF) que, na cidade de Uberlândia, Minas Gerais, entrou com uma ação na Justiça Federal para tirar de circulação o Dicionário Houaiss, um dos mais conceituados no Brasil. De acordo com  o MPF, esta publicação apresenta definições pejorativas e preconceituosas referentes à etnia cigana, incorrendo, portanto, na prática de racismo.


Em 1988, a Constituição Federal brasileira definiu a prática de racismo como um crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão. Em 1997, este dispositivo constitucional foi regulamentado, e o Código Penal brasileiro passou a incluir uma referência específica ao racismo, quando define as penas para o crime de injúria: se no ato de injúria forem utilizados elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem, a pena será de reclusão de um a três anos e multa.


"Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade e o decoro"... Este é o crime definido em nosso ordenamento jurídico. E novamente, esbarramos com o tema da dignidade...


Fonte: http://www.infojovem.org.br/2010/11/29/o-impacto-do-racismo-na-infancia/


Quando vamos ao Dicionário Houaiss e procuramos a palavra cigano, encontramos uma série de definições: " (...) povo itinerante que emigrou do Norte da Índia para o oeste (antiga Pérsia, Egito), de onde se espalhou pelos países do Ocidente(...)" - esta é uma delas. Seguimos na leitura. Adjetivo; adjetivo e substantivo masculino... E aí começam os problemas:


Derivação: por extensão de sentido - aquele que tem vida incerta e errante; boêmio
Derivação: por analogia - vendedor ambulante de quinquilharias; mascate
Uso pejorativo - aquele que trapaceia; velhaco, burlador; que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina.
Criança romani na Romênia
Fonte: http://softreceitas.blogspot.com/2011/09/qual-diferencaporque-discriminar.html


O Procurador do MPF que entrou com a ação solicitou que a Justiça determine a retirada de circulação do Dicionário Houaiss e o pagamento de indenização no valor de 200 mil reais - o que equivale mais ou menos a 115 mil dólares ou 87 mil euros - por danos morais coletivos. A polêmica ainda não foi solucionada. No dia 28, terça-feira, o Instituto Antônio Houaiss e a editora responsável pela publicação do Dicionário questionaram a ação do MPF, alegando que a publicação apenas refletiu em seu conteúdo o uso corrente da palavra; que o emprego pejorativo do termo ocorre no senso comum; e que, sendo assim, deveria constar do Dicionário, desde que ficasse clara esta sua característica pejorativa.


O questionamento da definição de cigano presente nos dicionários brasileiros teve sua primeira manifestação oficial em 2009, quando a Procuradoria da República recebeu uma representação de um cidadão brasileiro de etnia cigana sobre este tema. A partir da denúnica, foram enviadas recomendações às editoras para que procedessem à alteração.


Em uma rápida pesquisa feita em outros dicionários, percebemos que a definição depreciativa e preconceituosa se repete. Encontramos novamente as palavras boêmio; astuto, velhaco, trapaceito; avaro, impostor... E as definições: pessoa que faz negócio para burlar; pessoa que tem arte e graça para captar as vontades.



As palavras possuem uma força que, muitas vezes, subestimamos. As palavras revelam a história ou a distorcem. Por meio delas, acontecimentos são registrados; na ausência delas, acontecimentos são esquecidos e é como se jamais tivessem ocorrido. O significado das palavras é dinâmico, assim como a vida é dinâmica, e o sentido delas é construídos e reconstruído por nós, todos os dias, em nossas relações, em nossos movimentos de dar nomes às coisas, aos fatos que nos rodeiam. As palavras são carregadas de memórias, de ações e de poder.

O uso pejorativo das palavras é sempre ofensivo e depreciativo. Sua fonte é, na maioria das vezes, o preconceito e a discriminação, e a manutenção deste uso depreciativo na linguagem alimenta as dinâmicas de desigualdade. De forma desavisada, podemos pensar: "mas são apenas palavras". Nunca nos esqueçamos que palavras criam realidades, para o bem o para o mal. 

Por isso, gostaríamos de compartilhar com nossas queridas e queridos seguidores esta notícia sobre a ação movida pelo MPF. Ao afirmar o caráter preconceituoso e discriminatório das definições presentes no Dicionário Houaiss, este órgão afirmou que, aquilo que talvez pudesse ser considerado "nomal" ou "aceitável" há algumas décadas atrás, não o é mais na sociedade brasileira. Não é mais aceitável ferir a dignidade de uma etnia.


Cozinha dos Vurdóns





Comentários

  1. Com certeza temos que lutar,lutar e lutar pela reafirmação da nossa dignidade e idoneidade como pessoas e como etnia!Somos seres humanos e compartilhamos esta humanidade com todos os povos da Terra,estando todos em igualdade de condições no que se refere à virtudes e defeitos de caráter!A Psicologia nos mostra que em qualquer lugar do mundo o ser humano,seja de que etnia for,reúne em si sentimentos,emoções,qualidades boas e más,enfim uma personalidade humana,capaz de erros e acertos...Somos todos feitos de sombra e luz! O preconceito(tão nosso conhecido)é que permite e facilita nomear indivíduos,etnias,coletividades sob designações pejorativas e infamantes!Tudo isto,acontece pelo poder das palavras...A xenofobia começa primeiro na mente perversa,depois se estende através da palavra de convencimento alheio e finalmente,se manifesta concretamente nos atos de agressão,discriminação,desrespeito e violência! É preciso iluminar as mentes para que haja consciência da Verdade e,a partir daí,é que poderão surgir mudanças efetivas para obtenção da justiça e da igualdade de direitos e deveres para todos! Parabéns pelo post!Que Sara nos ilumine e nos dê cada vez mais coragem,força e união!Que Dhiel nos ilumine! Dzorlo angali(Forte abraço!) beijos em todas!

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    1. Suas palavras dizem tudo, querida Cezarina. Este é o ciclo: pensamentos, palavras, ações; preconceito, estereótipos, discriminação, exclusão, violência. Que nossas palavras sejam não aquelas que alimentam, mas aquelas que rompem este ciclo. Que Sara nos abençoe. Que possamos, juntas, juntos, lançar luz sobre as mentes e os corações. Muitos beijos!

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  2. Claro que não e aceitável! É sumamente reprovável, e o Tribunal dos Direitos Humanos tinha obrigação de exigir uma rectificação imediata en todos os dicionários do mundo. As palavras são armas que podem ser letais, são reflexo da sociedade.
    Em Espanha, quando há alguma notícia, geralmente negativa, que implica uma pessoa de raça negra, amarela ou cigana, já não se pode mencionar essa circunstância, porque se considera descriminatóris a forma de dar a notícia. Simplesmente se diz, como se diria como uma pessoa de raça branca: Um homem, uma mulher.
    O resto sobra, os brancos também cometem muitos erros, demasiados, e nem por isso se nomeia a sua raça. Parecem coisas secundárias, insignificantes, e não podem sê-lo, numa sociedade decente e conscencializada da importância dos gestos e dos pormenores.
    Oxalá tudo vá a melhor, sinal que avançamos todos.
    Beijinhos grandes

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    1. É interessante, María, como se dá a dinâmica da discriminação. É justamente como você diz: as raças e etnias dominantes não são nomeadas. As raças e etnias que estão em uma situação de desigualdade e discriminação são comumente nomeadas de forma pejorativa. Nomear a raça e a etnia é importante para revelar a desigualdade, é importante para que não esqueçamos de que a discriminação existe. Mas nunca deve ser instrumento para fortalecer a dinâmica de desigualdade, os estereótipos e os preconceitos. Vamos torcer para que a ação do MPF tenha efeitos no Brasil. E que no mundo as atenções se voltem para essa questão. Beijo!

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  3. Até nos dicionários?
    Será sempre uma luta incessante.
    7 beijos brilhantes e gostei do "Dzorlo angali" que a D. Cezarina escreveu.

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    1. Veja, Carlota, até nos dicionários... A vigilância deve ser constante, em todas as frentes, em todos os sentidos. Um beijo para você!

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  4. Eu ontem estive aqui e não deixei comentário nenhum, porque estive a pensar no assunto. Não deixei comentário, porque se calhar ficam aborrecidas com o que penso. Eu não dou assim tanta importância ao que está ou não escrito num dicionário com muitos anos. Assim como acho até um pouco absurdo isso de se vir pedir indeminizações por coisas que foram feitas no passado, por outros que pensavam diferente. Fizeram-se tantas coisas erradas com tanta gente.
    As palavras são importantes, muito importantes. Mas que interessa mudar um dicionário, se as pessoas continuam a pensar preconceituosamente? Mais do que mudar as palavras de um dicionário, importa mudar as mentalidades do presente, porque das do passado já não nos interessa. E é importante não esquecer o passado, mas é mais importante fazer do presente um lugar sem preconceito.
    Não sei se estou errada.
    Beijinhos amigos para todas.

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    1. Querida Isabel, não ficamos aborrecidas, de forma alguma, pois acreditamos que o debate deve ser aberto a diferentes opiniões. Afinal, é assim que crescemos. Apenas para compartilhar com você algumas idéias. Concordamos que o mais importante é mudar as mentalidades. É exatamente isso! E as mentalidades têm reflexos. Se concretizam em atos, nos livros didáticos, na forma de dar uma notícia na televisão ou no jornal, na forma de atender uma pessoa no posto de saúde, na linguagem. Atos e palavras se entralaçam e se fortalecem e têm consequências na vida das pessoas. Vamos imaginar uma pessoa que nunca viu ou teve qualquer contato com um cigano ou cigana. Ao se deparar com uma definição no dicionário que diz: "Pessoa que faz negócio para burlar", qual será o efeito que esta definição terá sobre sua atitude caso ela venha a conhecer uma pessoa de etnia cigana? E você também tem toda razão ao dizer que precisamos mirar o futuro, e é justamente por isso que as mudanças devem também estar refletidas nas diferentes esferas da vida... Para que a roda gire, e para que as mudanças sejam concretas nas vidas das pessoas. Um beijo muito grande para você!

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  5. Tive que ler duas vezes para me certificar do que estava a ler. Apesar de achar inconcebível, penso que a Isabel tem razão. Não podemos apagar o passado, as mentalidades e a época em que foram utilizados esses conceitos. Porém, hoje já não faz sentido a não ser numa descrição histórica sobre a evolução da palavra. Só nesse sentido será aceitável.

    As palavras têm força é preciso actualizá-las e rectificá-las no presente e futuro. O passado não podemos alterar.

    O voo, é sempre o voo que comanda as ideias e as torna humanas.
    Pela humanidade.
    Beijinhos e saudades para todas! :)))))))))

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    1. Sim, Ana, não podemos alterar o passado e devemos sempre caminhar, avançar, sempre com a disposição de mudar, de transformar, para que os mesmos erros não sejam cometidos. E nessa caminhada, há muitos meios de se lutar, muitas frentes nas quais agir. Concordamos inteiramente com você e com Isabel nisso. Beijos!

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  6. Lutar não é fácil

    mas quem não luta não vence

    Boa partilha
    Bjs tantos

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    1. Obrigada, Mar Arável! Outros tantos beijos para você.

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    2. Gostei, Mar Arável! É mesmo assim. mas que custa...custa!

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  7. Andar em frente, sempre, é a solução. Coisa que sempre fizeram e de que nunca tiveram medo os "Roms"!
    7 beijos
    do falcão
    e ouçam uma canção linda:
    http://sobreorisco.blogspot.com/2012/03/as-coisas-eternas.html

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    1. Em frente sempre, Falcão! Giremos a roda! 7 beijos para você.

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  8. Confesso que tinha a ideia que o Dicionário Houaiss era uma obra de referência. Mas lá está, certas referências, quando não bem estudadas, tendem ao preconceito. Folgo por saber que há alguém atento, que pugna pela dignidade do direito a certas formas de estar. E, ignorar isso, é não saber com que malhas se tece a liberdade.
    Gostei do post, está excelente.

    Beijos, com pinceladas de solidariedade, para todas!

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    1. Obrigada, AC, pela solidariedade! O preconceito, os estereótipos e a discriminação são tão arraigados que é necessária uma vigilância constante. É no cotidiano, a cada ato e a cada palavra, que podemos construir um mundo mais solidário, mais justo, mais eqüitativo. Vamos seguir! Beijos.

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  9. Espero que a ação dê certo e que haja não só a correção, mas também uma retratação

    grande beijo e boa semana!

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    1. Vamos acompanhar a ação, Daniel, e continuar atuando para que as referências ofensivas e desqualificaficadoras sejam revistas, para que o presente e o futuro sejam construídos em outras bases. Uma ótima semana para você também. Beijos!

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  10. Eliminar os significados pejorativos dos dicionários, é de extrema importância. Primeiro porque nunca deveriam ter sido lá colocados, segundo e como já aqui foi explicado, é importante que quem recorra aos dicionários à procura do significado da palavra "cigano", não se depare com com explicações que induzam à descriminação e ao racismo. Este acontecimento juntamente com a mudança de mentalidades (que não é fácil mas é possível), irá trazer a dignidade a um povo que ao longo de séculos tem sido muito mal tratado.
    É importante perceber que se os ciganos têm comportamentos que aos nossos olhos são reprováveis, muitas vezes é para poderem subsistir. A isso são obrigados. Ninguém lhes dá trabalho, casa, um simples sorriso, uma palavra amiga...
    Impõe-se "limpar" dicionários e mentes humanas!!!
    Alguém já ouviu dizer bem dos ciganos?! Eu não... a não ser que são um povo muito unido.
    Comecemos por nós. Se cada um começar com a sua "limpeza" mental, a mudança acontece.

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  11. E esta mudança irá acontecer Cláudia, se juntas, juntos, caminharmos em direção a ela. Com solidariedade e muito perseverança, pois, como você bem diz, transformar mentalidades leva tempo, é necessária uma ação contínua para que isso de fato ocorra. Vamos seguir, retificando os erros do passado, e re-significando o presente e o futuro, com elementos que reflitam uma maior solidariedade, uma maior justiça e uma maior equidade. Um forte abraço para você.

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