A INCLUSÃO COMO CAMINHO - II
Em 1948, como uma resposta aos horrores ocorridos na II Guerra Mundial, a recém criada Organização das Nações Unidas promulgou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nela, direitos fundamentais como o direito à vida, à liberdade de expressão, ao trabalho e à educação foram reafirmados e alçados à categoria de direitos inalienáveis de qualquer pessoa, direitos que todas e todos nós temos pelo simples fato de sermos humanos.
Passados mais de 60 anos da promulgação da Declaração, a concretização dos princípios deste tão importante documento segue sendo um desafio. Ao passarmos os olhos mais uma vez pelos 30 artigos que a compõem, nos deparamos com frases simples e diretas, orientações claras elaboradas por representantes de diferentes origens culturais e jurídicas - um arcabouço de idéias de rápida e fácil apreensão e que fazem todo o sentido se pensarmos no que significa direitos fundamentais.
Atualmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é divulgada em mais de 360 idiomas, sendo o documento mais traduzido no mundo. Este enorme alcance, bem como os progressos realizados pela humanidade em termos de conhecimento, informação e comunicação, deveriam nos permitir ver claramente refletidos no ordenamento jurídico dos países e nos processos de formulação de políticas públicas os princípios contidos neste documento. No entanto, é embaraçoso perceber que muito do que foi ali pactuado segue sendo um desafio em termos de concretização em diferentes países do mundo.
Em seu Artigo 1°, a Declaração afirma:
"Todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir
uns para com os outros em espírito de fraternidade". Iguais em dignidade e direitos, sem qualquer distinção de
raça, cor, sexo, religião, opinião política... ou qualquer outra situação, como afirmado no Artigo 2°. Mais à frente, em seu Artigo 26, a Declaração afirma o direito de todas as pessoas à educação.
Fonte: Anistia Internacional, 2008.
Muito se fala em direitos humanos e, em certos momentos, é importante lembramos de seu real significado, resgatá-lo para que ele não se esvazie. Quando falamos em direitos humanos nos referimos a um conjunto de necessidades que devem ser atendidas para que todos os seres humanos - homens e mulheres - vivam com dignidade e tenham as mesmas condições de progredir, de desenvolver suas potencialidades e de contribuir para a sociedade na qual estão inseridos.
Recorrentemente temos nos referido à importância da educação, da geração de conhecimento e da disseminação de informação como uma poderosa arma contra o preconceito e a discriminação. E nessa discussão é fundamental não esquecer que o direito à educação é um direito humano, um direito fundamental e universal que faz parte do conjunto de direitos que, se garantidos, protegem e afirmam a dignidade humana.
Há décadas, as crianças ciganas têm sido vítimas de discriminação no sistema educacional dos países. De acordo com o estudo From Segregation to Inclusion: Roma Pupils in the United Kingdom - A Pilot Research Project, lançado em 2011, países do Leste Europeu, como a República Theca e a Eslováquia, têm sido constantemente criticados na esfera internacional por adotarem a prática de encaminhar crianças ciganas para escolas segregadas ou para escolas especiais, destinadas a crianças com problemas mentais. Aqui nos deparamos, portanto, com uma grave violação de direitos humanos.
Fonte: http://www.edupics.com/photo-croatia-roma-children-and-women-i13134.html
Mulheres e crianças ciganas, Croácia, 1941
De acordo com o mesmo estudo, em 2007, o tema da discriminação de crianças ciganas no sistema escolar foi objeto de denúncia à Corte Européia de Direitos Humanos. No julgamento, a Corte avaliou que "o desproporcional encaminhamento de crianças ciganas para escolas especiais, sem uma justificativa objetiva e razoável, significava uma discriminação indireta ilegal e uma violação à Convenção Européia de Direitos Humanos. Neste julgamento, a Corte requereu à República Tcheca que adotasse medidas para por fim à discriminação contra ciganos e ciganas no sistema educacional".
Diante da realidade da discriminação, a pesquisa-piloto realizada no Reino Unido buscou levantar a situação de crianças ciganas tchecas e eslovacas que migraram com suas família, buscando compreender seu processo de inserção no sistema escolar inglês. No período de junho a agosto de 2011, o estudo cobriu oito localidades inglesas e entrevistou 61 estudantes ciganos - tchecos e eslovacos - 28 pais e mães ciganas e 25 escolas. A pesquisa revelou que 85% dos estudantes entrevistados havia frequentado escolas especiais ou classes segregadas na República Tcheca e na Eslováquia e que grande parte daqueles que frequentaram escolas especias foram encaminhados para estas instituições após terem sido submetidos a um teste psicológico, aos 7 ou 8 anos de idade. O estudo também demonstra que, ao se referirem às escolas da República Tcheca e da Eslováquia, a grande maioria dos estudantes ciganos entrevistados afirmou ter experienciado o racismo ou algum tipo de abuso verbal por parte de seus colegas, assim como um tratamento desigual e discriminatório por parte dos professores e professoras, inclusive com alegações sobre a utilização de castigos físicos.
Ao realizar o levantamento sobre a situação das crianças ciganas nas 25 escolas inglesas pesquisadas, o estudo revela que apenas uma pequena porcentagem delas - 2% a 4% - de fato necessitavam de educação especial por apresentarem dificuldades de aprendizagem ou algum tipo de deficiência. Este dado confirma a decisão tomada pela Corte Européia de Direitos Humanos em 2007: crianças ciganas estão sendo encaminhadas para escolas especiais sem qualquer justificativa razoável, o que revela uma prática motivada pela discriminação.
A experiência vivenciada pelas crianças ciganas nas escolas do Reino Unido mostra a possibilidade do reconhecimento, respeito e co-existência entre diferentes grupos étnicos. Em sete das oito localidades inglesas pesquisadas os estudantes ciganos e ciganas afirmaram não terem vivenciado qualquer tipo de racismo nas escolas. Em sua grande maioria estes estudantes declararam preferir as escolas do Reino Unido em razão da ausência de racismo e discriminação e por promoverem a igualdade de oportunidades. Os pais e mães entrevistados expressaram seu reconhecimento e valorização com relação ao ambiente escolar no Reino Unido, destacando terem observado o sentimento de seus filhos e filhas de serem bem vindos, e a possibilidade de experienciarem um ambiente no qual a igualdade de oportunidades e tratamento é uma realidade. Todos eles afirmaram que a busca por melhores oportunidades de educação e emprego para suas crianças foi uma das principais razões que motivaram sua decisão de migrar para o Reino Unido. Muitos deles acreditam que a transformação destas atitudes e práticas discriminatórias na República Tcheca e na Eslováquia levará gerações para se concretizar e alguns chegam a duvidar que esta realidade algum dia se transforme.Todos eles acreditam que as chances de suas crianças serem bem sucedidas é maior no Reino Unido do que na República Tcheca e na Eslováquia.
UNICEF, Montenegro
O preconceito e a discriminação não são algo etéreo que paira sobre nossas cabeças. Sua matéria é bastante concreta, e tem impactos objetivos e profundos na vida das pessoas. Em um ambiente discriminatório, não há vencedores, todos perdem, inclusive aqueles que têm a ilusão da vitória, em termos da manutenção de seu poder e de seus privilégios. Perdem as pessoas que são discriminadas, por não terem a oportunidade de se desenvolverem em toda a sua plenitude. Perdem os países, por desperdiçarem os talentos e as qualidades de pessoas que muito poderiam contribuir para o crescimento e o desenvolvimento econômico e social. Perde quem discrimina, por desperdiçar a oportunidade de ampliar seus horizontes, reconhecer e aprender com o outro e com a diferença. A discriminação tem um custo - um custo econômico, um custo social, um custo político. São os ciclos de pobreza e isolamento social que são alimentados aqui. São a violência, a perseguição e os crimes de ódio que crescem em um cenário como este. São guerras que são iniciadas. São vidas que se perdem.
Há saída? Sim, há! A humanidade já a encontrou. Ela está registrada em documentos, ela é repetida recorrentemente há décadas. Nós já sabemos o caminho a seguir:
"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.
Dotados de razão e de consciência,
devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade"
Como diz o escritor brasileiro Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas:
"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim:
esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem."
Nestes tempos de desassossego, precisamos ter coragem e agir. Mostrar que é possível. O tempo pode ser longo. O trabalho pode ser árduo. Porém, ao alcance de nossas mãos está a possibilidade de darmos a nossa pequena contribuição.
Cozinha dos Vurdóns
Parabéns!Excelente artigo!É preciso falar,é preciso contar e recontar,é preciso ter coragem!E como diz o poeta português Manuel Alegre em seu poema LETRA PARA UM HINO :
ResponderExcluirÉ possível falar sem um nó na garganta
é possível amar sem que venham proibir
é possível correr sem que seja fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.
(...)
Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre.
Beijos em seus corações!Que Sara as segure na palma das mãos! Devlesa!
Querida Cezarina, que belo poema! As palavras têm muita força e precisamos utiliza-las a favor de nossas lutas. E a coragem de dizer e não deixar-se domar deve nos acompanhar sempre. Obrigada por suas lindas palavras. Elas nos dão muita força. Beijos!
ExcluirRendi-me uma vez mais com a vossa postagem histórica. Excelente!
ResponderExcluirPena é que os direitos apregoados estejam aquém de ser realizados. :(
Por esse mundo fora ainda há muito a fazer. Pelo menos no meu país tenta-se que as crianças sejam integradas na escola. Já me deixa satisfeita. Todavia, ainda há muito para realizar.
Grata pela vossa luta!
Beijinhos para todas e muita luz para poderem rebater a sombra que às vezes enfrentam. :)x9 :)
Ana, a sombra é enorme... Porém a luz é intensas e brilha muito, muito alto! Você tem toda razão. Há muito o que fazer pelo mundo afora. E algumas atitudes estão ao alcance de nossas mãos. Também somos grandes quando estamos juntas, juntos. E podemos mostrar que é possível. As palavras são um começo e apontam o caminho. Os atos devem se seguir a elas para que não se percam no vento. Muita luz para você também, querida. Que Sara te abençoe.
Excluirbem legal a série de posts!
ResponderExcluireu apoio!!
beijos
Obrigada pelo apoio, Chef. Beijos!
ExcluirO post é lindo e verdadeiro. Parabéns. Mesmo gostando muito de Guimarães Rosa, a citação de Grande Sertão Veredas não combina, visto ser este o livro brasileiro com mais esteriótipos sobre os cigados do Brasil, referencia em teses e conferencias.
ResponderExcluirum abraço e boa continuidade nos trabalhos,
Sônia Mellin
Obrigada, Sônia. Continue conosco! E sobre o Grande Sertão, você tem toda razão. Porém, a passagem sobre a vida que pede coragem é tão bela e verdadeira que não resistimos... Um abraço muito grande.
ExcluirAs crianças nascem todas iguais, puras e incontaminadas. Somos os que já cá estamos que as marcamos a ferro e fogo para que sejam diferentes toda a vida, mas algum dia deixará de ser assim, graças à luta sem descanso em que muitos deixam a pele. Algum dia a justiça derrubará fronteiras e triunfará em todo o mundo, temos que acreditar sempre que assim será. Algum dia!
ResponderExcluirMuitos beijinhos
Sim, María, precisamos acreditar. Precisamos ser profundamente responsáveis quando nos referimos a pequenos seres humanos, meninos e meninas em formação. A discriminação deixa marcas profundas e pode alterar definitivamente a trajetória de vida de uma pessoa. Estar submetido a ela diariamente é algo que afeta o desenvolvimento de uma criança das mais diferentes formas. Repito: precisamos ser responsáveis. Precisamos superá-lá.
ExcluirÉ uma verdade que da assunção escrita dos direitos à sua concretização quotidiana e integral, vai um longuíssimo caminho.
ResponderExcluirO símbolo da Amnistia Internacional é muito significativo, neste (e noutros) casos: precisamos dos prncípios e valores (que aqui poderão ser simbolizados pela pomba), mas precisamos de mãos que garantam a acção.
Beijinhos e boa semana para todas.
Da palavra à ação, Sara. Mãos que se unam por valores comuns e pelo trabalho e asas que nos façam voar bem alto para que não nos esqueçamos que é possível, que podemos ir além. Um beijo muito grande para você.
Excluir... dia todos seremos ...
ResponderExcluirde novo crianças
para amarmos melhor a liberdade
É isso, Mar Arável! Sejamos livres! Amemos e defendamos a liberdade com vigor. Para nós, para você, para eles, para elas... Para todas as pessoas.
ExcluirTodos deveriam à partida ter os mesmos direitos, mas também os mesmos deveres (o respeito pelos direitos dos outros). Todos deveriam ter aquilo que permite uma vida digna, independentemente da raça, religião, cor...porque somos Seres Humanos.
ResponderExcluirBeijinhos amigos
Sim, Isabel, pois a defesa e garantia de nossa dignidade humana deve estar acima e além, e deve conduzir os nossos atos. Esta é a nossa chama, esta é a nossa luz, cálida e delicada luz, que precisa ser nutrida e cuidada. Direitos e deveres sempre. Respeitar e ser respeitada. Beijo grande.
ExcluirAbsolutamente de acordo. E indicar os bons exemplos constitui também uma boa forma de continuar a abrir caminho, apontando soluções. Embora estejamos longe do fim, penso que países desenvolvidos, como o Reino Unido, onde a multicultaralidade é já a regra e não a excepção, estão melhor preparados para integrar as diferenças. Educar é realmente preciso, não só as crianças individualmente, mas o colectivo que são as sociedades inteiras. É preciso mostrar, denunciar, reparar e construir. Mas acima de tudo, é preciso persistir. E este espaço é exemplo disso mesmo.
ResponderExcluirUm grande abraço e o desejo de um bom fim de semana.
Obrigada, R., por suas palavras de incentivo. É esta a nossa intenção: por meio de experiências concretas, mostrar que é possível. Divulgar amplamente ações que transformam ideais em realidade e fazem toda a diferença na vida das pessoas. Seguiremos neste caminho, e é bom compartilhá-lo com nossos queridos e queridas seguidores/as. Um abraço muito grande.
ExcluirPS: Eu é que agradeço reconhecidamente a vossa sensibilidade (e divulgação) para a causa "1 euro". Bem hajam, queridas amigas.
ResponderExcluirOutro abraço enorme!
ExcluirUm excelente post como sempre.
ResponderExcluirPena e logo no 1ª artigo. a declaração ser logo violada.
Mas cabe-nos a nós, tentar mudar a mentalidade ainda vigente.
Um pouco combalida, sem saber o que escrever, sem inspiração, mas estou de volta.
7 beijos brilhantes para as minhas princesas cozinheiras.
7 beijos para você, Carlota. As violações de direitos são constantes, e atingem profundamente a dignidade humana. Precisamos acreditar que é possível transformar as mentalidades. Apenas assim poderemos experimentar um modo de viver mais igualitárias, mais justo, onde a beleza da diversidade floresça. Juntas seguiremos dando a nossa contribuição. É bom tê-la de volta.
Excluir"O tempo pode ser longo. O trabalho pode ser árduo..".
ResponderExcluir...e pior do que falhar ou não conseguir é nem sequer tentar. E, disso não nos podem acusar. Iremos lutar todos juntos de conquista em conquista e fazer ouvir a nossa voz sempre mais alto, mais alto!
A luz ao fundo do túnel cada vez é mais real!
Beijinhos para todas
Querida Cláudia, suas palavras nos comovem! Sim, é preciso tentar sempre, ainda que os resultados não sejam claros, ainda que não saibamos ao certo os desdobramentos de nossas ações. Sempre em movimento, e motivadas pela alegria e a crença de que defender o direito inalienável de todas as pessoas de viverem com dignidade é o certo a fazer. Muitos beijos.
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